Como surgiu e o que muda com a permissão de investimento estrangeiro irrestrito nas companhias aéreas brasileiras?

Pioneira, a aviação comercial brasileira teve início em março de 1927 (pouco mais de uma década depois do primeiro voo com venda de passagens no mundo, nos EUA, em 1914). Curiosamente, isso aconteceu antes mesmo que existisse uma companhia brasileira (a Varig nasceria em maio). Sob autorização especial do governo, essa inédita operação no país, ligando as cidades gaúchas de Porto Alegre e Rio Grande, foi realizada pela empresa de origem alemã Condor Syndikat, com tripulação também alemã.

Ainda com a memória recente da Primeira Guerra Mundial, encerrada em 1918, neste desabrochar da atividade, as nações em todo o mundo já passavam a refletir sobre quem poderia realizar voos dentro de seus espaços aéreos soberanos. Estariam autorizadas a operar voos domésticos somente empresas aéreas registradas no próprio país ou também transportadoras de origem estrangeira? Como regra geral, predominou a primeira opção. É o que segue em vigor em todo o planeta até hoje. Por exemplo, nos Estados Unidos apenas companhias americanas transportam passageiros e cargas dentro do país. No Brasil, apenas aéreas brasileiras realizam essa atividade (normas para regular os direitos de estabelecer operações aéreas entre países foram consolidadas mais tarde, como veremos mais adiante).

Mas ficava aberta outra questão: ainda que registrada no país em que desejasse realizar voos domésticos, essa empresa poderia receber investimentos estrangeiros para suportar os altos custos envolvidos? Uma eventual dependência financeira não poderia chegar a turvar a nacionalidade da empresa? Neste caso, o panorama global era – e ainda é – um pouco mais variado. Ainda assim, prevaleceu a ideia de que companhias nacionais sim, poderiam contar com capitais estrangeiros, desde que respeitado um limite fixado em lei. O tamanho dessa parcela acabou sendo diverso entre os países, também variando bastante até hoje ao longo do tempo.

Por aqui, ambas as decisões foram formalizadas pela primeira vez em 1932, com o Decreto Federal 20.914. O artigo 9º da Lei reservou a realização de voos entre pontos do território nacional às aeronaves brasileiras. O art. 19 definiu que, para ser considerada brasileira, uma companhia deveria ser legalmente constituída e “com sede principal no Brasil, com gerência confiada a brasileiro e um terço pelo menos do capital social pertencente a brasileiros aqui domiciliados”.

Saltando no tempo, a norma mais recente sobre a participação de capital estrangeiro em aéreas brasileiras era a do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), de 1986, que fixava o limite máximo a 20% do capital votante. Aos olhos de 2019, diante do atual grau de desenvolvimento da aviação nacional, do papel do Brasil no mundo e da escala global do fluxo de capitais, tal parcela figurava como algo anacrônico.

Finalmente, em maio deste ano, o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória 863/2018, alterando o CBA e liberando até 100% de capital estrangeiro nas companhias aéreas brasileiras. A novidade abriu um leque de possibilidades para o desenvolvimento da aviação comercial no país. Mas que possibilidades são essas?

É importante destacar que a nova legislação não altera em nada as regras de operação de rotas domésticas no Brasil. Assim como em todo o mundo, fica aqui mantida a autorização exclusiva às transportadoras nacionais. Outro ponto que não se alterou foi a obrigatoriedade de, independentemente da existência de capital estrangeiro, para ser considerada brasileira uma empresa deve ser constituída no Brasil, com sede e CNPJ no país, e sujeita às legislação brasileira (leis civis, tributárias e trabalhistas, além de normas e regulamentos  da aviação, entre outras).

São dois os caminhos existentes para o investimento estrangeiro na aviação doméstica brasileira atualmente. O primeiro é por meio de inversões em transportadoras brasileiras existentes, independentemente se de capital aberto (com ações em bolsa) ou fechado. Em qualquer dos casos, isso pode acontecer com a ampliação de participações já detidas (que estavam restritas aos 20%) ou com o estabelecimento de novos acordos societários. O segundo caminho é por meio da constituição de uma empresa aérea totalmente nova, que pode ser uma subsidiária local de uma companhia já existente em outro país ou que até já atue no Brasil oferecendo voos internacionais.

A principal vantagem da mudança da regra é a diversificação das fontes de financiamento para o exercício de uma atividade que, pelos altos custos, é intensiva no consumo de capitais – ainda mais no Brasil, onde perdura uma situação de custos superiores à média global do setor. Junto com a diversificação, vem a possibilidade de obtenção de recursos “mais baratos” e comprometidos com o sucesso. Antes, por exemplo, uma empresa brasileira com necessidade de investimentos precisava contratar empréstimos no mercado, com taxas refletindo o grau de risco da operação. Esse credor não tinha necessariamente tanta preocupação com o uso do recurso, uma vez que estava garantido por contrato. Em comparação, um sócio traz recursos próprios, portanto sem taxas, e tem interesse no desenvolvimento do negócio, podendo envolver-se com a administração, na expectativa de obter retorno financeiro.

A modernização da lei alinha o Brasil aos principais mercados de aviação do mundo. De acordo com estudo do Banco Mundial, apenas Arábia Saudita, Etiópia, Haiti e Venezuela tinham mais restrições que o Brasil para o investimento estrangeiro em aviação. O resultado é um ambiente mais atrativo para investimentos que possibilitarão mais empregos, renda e opções de voos para os usuários. A efetivação desses investimentos passa a depender principalmente do ambiente econômico e da perspectiva de retorno.

Liberdades do Ar

Desde a aprovação da MP 863 (convertida na Lei 13.842/2019) tem havido alguma confusão, com o entendimento que o fim da restrição à participação de capital estrangeiro em aéreas brasileiras liberaria empresas estrangeiras para realizarem voos domésticos no Brasil. Isso não é verdade. Vamos, novamente, resgatar um pouco de história para entender.

O gradual aprimoramento técnico da aviação, com aumento da autonomia dos aviões tornando mais viáveis os voos internacionais, e o ambiente turbulento da primeira metade do século XX (com duas guerras mundiais), estão relacionados à consolidação tardia das normas específicas para regular operações aéreas entre países – conhecidas como Liberdades do Ar – com a criação da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO, na sigla em inglês, braço da Organização das Nações Unidas) na década de 1940.

Como regra geral, a operação de voos internacionais entre dois países é previamente negociada pelos governos mediante acordos bilaterais ou multilaterais. Essa é a diretriz da Convenção sobre Aviação Civil Internacional de Chicago, em 1944, que estabeleceu os parâmetros da regulamentação dos serviços aéreos no mundo. Após a Convenção, foram criadas as chamadas Liberdades do Ar, ou Direitos de Tráfego, um conjunto de nove regras que permite que as empresas aéreas de um país possam operar no território de outro, desde o mero sobrevoo até o transporte doméstico de passageiros e cargas. Os países não são obrigados a aderir às regras em plenitude. Uma explicação sobre cada uma destas regras está disponível no site da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC.

A nona Liberdade trata da possibilidade de realização de voos domésticos por companhias aéreas em um país que não o de sua bandeira (quer dizer, um território estrangeiro em relação à sede da empresa). Na prática essa liberdade, conhecida como cabotagem pura, é uma absoluta exceção em todo o planeta. Uma das razões para isso é porque haveria, em um mesmo mercado, empresas competindo em condições desiguais, uma vez que estariam sujeitas a legislações diferentes (trabalhista, tributária, de segurança etc). Essa não seria uma concorrência justa.

 

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